O’Neill
(Alexandre), moreno português,
cabelo asa de corvo; da angústia da cara,
nariguete que sobrepuja de través
a ferida desdenhosa e não cicatrizada.
Se a visagem de tal sujeito é o que vês
(omita-se o olho triste e a testa iluminada)
o retrato moral também tem os seus quês
(aqui, uma pequena frase
censurada…)
No amor? No amor crê (ou não fosse ele O’Neill!)
e tem a veleidade de o saber fazer
(pois amor não há feito) das maneiras mil
que são a semovente estátua do prazer.
Mas sofre de ternura, bebe de mais e ri-se
do que neste soneto sobre si mesmo disse…
Alexandre O’Neill, durante os primeiros anos da sua
atividade criativa, no período da sua adesão ao Surrealismo, também se dedicou
às artes plásticas.
SEM JEITO NEM VOCAÇÃO PARA
“O MODO FUNCIONÁRIO DE VIVER”
Não tendo estudos superiores (não concluiu sequer o liceu), depois de trabalhar como escriturário entre 1946 e 1952 na Função Pública (“o modo funcionário de viver”, que nunca foi o seu), de onde foi despedido, Alexandre O’Neill passou a dedicar-se quase exclusivamente à escrita, mas de forma livre e plural, desdobrando-se em vários áreas, todas relacionadas com a palavra e com os livros. Foi tradutor, guionista de cinema, crítico de televisão, publicitário, cronista e, sobretudo, poeta. E foi até, entre 1959 e 1960, encarregado de uma biblioteca itinerante da Fundação Gulbenkian.
Foi como redator de publicidade que O’Neill encontrou o seu principal sustento, sendo ainda hoje famoso o slogan “Há mar e mar, há ir e voltar”, de sua autoria, criado para um anúncio institucional de prevenção contra afogamentos nas praias.
O célebre fado “Gaivota”, imortalizado na voz de Amália Rodrigues, por muitos considerado o melhor fado de sempre, tem música de Alain Oulman e letra de sua autoria.
Durante toda a sua vida, mas sem quaisquer pretensões a ser fotógrafo,
O’Neill dedicou-se ainda à fotografia, registando sobretudo cenas do quotidiano
de Lisboa. O quotidiano foi sempre, aliás, o grande motivo dos seus poemas e
das suas crónicas.
“DESIMPORTANTIZAR” A POESIA
O ludismo no manuseio das palavras, o prazer na subversão de sons, de sentidos, de formas poéticas fixas constituem marcas formais típicas da poesia de O’Neill. Distanciando-se da poesia hermética, percorria temas como o amor, o medo, a solidão, o modo burguês de viver, a velhice. Portugal, “país pobrete e nada alegrete”, era também recorrente nos versos que fazia. A ironia que atravessa grande parte da sua obra é uma espécie de defesa contra o sentimentalismo piegas e contra o “belo efeito poético” que detestava.
Autodidata, individualista e provocador, via-se
essencialmente como um realista, que “apenas registava o aqui e o agora”. Nunca
se tendo levado demasiado a sério, não há nele quaisquer vestígios do
egocentrismo narcisista que não poucos artistas manifestam. Na última
entrevista que concedeu, autointitula-se “um bom poeta menor”, defendendo que é
mesmo preciso “desimportantizar” a poesia.
AMIGO
Mal nos
conhecemos
Inauguramos a
palavra amigo!
Amigo é um
sorriso
De boca em
boca,
Um olhar bem
limpo
Uma casa,
mesmo modesta, que se oferece.
Um coração
pronto a pulsar
Na nossa mão!
Amigo
(recordam-se, vocês aí,
Escrupulosos
detritos?)
Amigo é o
contrário de inimigo!
Amigo é o erro
corrigido,
Não o erro
perseguido, explorado.
É a verdade
partilhada, praticada.
Amigo é
solidão derrotada!
Amigo é uma
grande tarefa,
Um trabalho
sem fim,
Um espaço
útil, um tempo fértil,
Amigo vai ser,
é já uma grande festa!
Alexandre O’Neill
Acontecimentos marcantes
da vida do poeta em 14 datas
1924 – Alexandre Manuel Vahia de Castro O’Neill de Bulhões nasce em Lisboa. É descendente de irlandeses.
1944 – Termina o 1.º ano da Escola Náutica de Lisboa, mas é-lhe recusada a cédula marítima por causa da miopia.
1948 – Funda o Movimento Surrealista de Lisboa e colabora no livro de colagens surrealistas «Ampola Miraculosa».
1951 – Rompe com o Movimento Surrealista, gerando uma grande polémica. Publica o seu primeiro livro de poemas, “Tempo de Fantasmas”.
1953 – Preso pela Polícia Internacional de Defesa do Estado (PIDE) durante 40 dias.
1957 – Casa-se com a cineasta Noémia Delgado.
1959 – Nasce o seu primeiro filho, Alexandre Delgado O’Neill (falecido em 1993).
1966 – Publicação de uma antologia de poemas em Italiano, intitulada “Portugallo, Mio Rimorso”.
1967 – Publicação de “No Reino da Dinamarca – Obra Poética 1951-1965”, compilando todos os livros até então publicados.
1971 – Divorcia-se de Noémia Delgado e no mesmo ano casa-se com Teresa Patrício Gouveia, com quem tem o seu segundo filho, Afonso O’ Neill. O casamento dura até 1980.
1976 – Tem o primeiro problema cardíaco grave, que o obriga a internamento hospitalar.
1981 – Aluga uma casa em Constância. Passará a viver, alternadamente, e até à sua morte, entre esta vila ribatejana e Lisboa.
1982 – Publicação da 1ª edição das “Poesias Completas – 1951-1981”. É distinguido com o Prémio da Associação de Críticos Literários, pelo conjunto da sua obra, o primeiro e único prémio que recebe em vida.
1986 – Morre em 21 de Agosto, no hospital Egas
Moniz, em Lisboa, com 61 anos de idade, após alguns meses de internamento, em
resultado de novas complicações cardíacas.